sábado, 22 de março de 2014

Os Estatutos do Homem - Ato Institucional Permanente- Thiago de Mello

Artigo I 
Fica decretado que agora vale a verdade. Agora vale a vida, e de mãos dadas, marcharemos todos pela vida verdadeira. 
Artigo II 
Fica decretado que todos os dias da semana, inclusive as terças-feiras mais cinzentas, têm direito a converter-se em manhãs de domingo. 
  Artigo III  
Fica decretado que, a partir deste instante, haverá girassóis em todas as janelas, que os girassóis terão direito a abrir-se dentro da sombra; e que as janelas devem permanecer, o dia inteiro, abertas para o verde onde cresce a esperança. 
Artigo IV   
Fica decretado que o homem não precisará nunca mais duvidar do homem. Que o homem confiará no homem como a palmeira confia no vento, como o vento confia no ar, como o ar confia no campo azul do céu. 
        Parágrafo único: O homem, confiará no homem como um menino confia em outro menino. 
Artigo V  
Fica decretado que os homens estão livres do jugo da mentira. Nunca mais será preciso usar a couraça do silêncio nem a armadura de palavras. O homem se sentará à mesa com seu olhar limpo porque a verdade passará a ser servida antes da sobremesa. 
Artigo VI  
Fica estabelecida, durante dez séculos, a prática sonhada pelo profeta Isaías, e o lobo e o cordeiro pastarão juntos e a comida de ambos terá o mesmo gosto de aurora.
Artigo VII
Por decreto irrevogável fica estabelecido o reinado permanente da justiça e da claridade, e a alegria será uma bandeira generosa para sempre desfraldada na alma do povo. 
Artigo VIII
Fica decretado que a maior dor sempre foi e será sempre não poder dar-se amor a quem se ama e saber que é a água que dá à planta o milagre da flor. 
Artigo IX
Fica permitido que o pão de cada dia tenha no homem o sinal de seu suor. Mas que sobretudo tenha sempre o quente sabor da ternura.
Artigo X
Fica permitido a qualquer  pessoa, qualquer hora da vida, uso do traje branco. 
Artigo XI
Fica decretado, por definição, que o homem é um animal que ama e que por isso é belo, muito mais belo que a estrela da manhã. 
Artigo XII
Decreta-se que nada será obrigado nem proibido, tudo será permitido, inclusive brincar com os rinocerontes e caminhar pelas tardes com uma imensa begônia na lapela. 
Parágrafo único: Só uma coisa fica proibida: amar sem amor. 
Artigo XIII
Fica decretado que o dinheiro não poderá nunca mais comprar o sol das manhãs vindouras. Expulso do grande baú do medo, o dinheiro se transformará em uma espada fraternal
para defender o direito de cantar e a festa do dia que chegou. 

Artigo Final.
Fica proibido o uso da palavra liberdade, a qual será suprimida dos dicionários e do pântano enganoso das bocas. A partir deste instante a liberdade será algo vivo e transparente como um fogo ou um rio, e a sua morada será sempre o coração do homem.
 
Santiago do Chile,  abril de 1964

sábado, 15 de março de 2014

O supermercado-Walmir Ayala



Eu estava selecionando uns pés de couve-flor quando meu marido me disse: "Espere um momento que vou cumprimentar Heloisa". Não levantei os olhos do balcão das verduras nem sequer pensei que só poderia ser aquela Heloisa, uma mulher forte e invulnerável cuja estabilidade doméstica tinha sido até motivo de inveja para mim algumas vezes. Meus dedos correram por sobre as alfaces, remexi os tomates, pesei uma quantidade de cenouras, e nem ergui os olhos para ver para onde ele se dirigira, para ver onde estaria Heloisa. Andei puxando o carrinho que ele deixara ao meu lado, com a mercadoria meticulosamente arrumada, à sua maneira. As salsichas junto com a manteiga, os iogurtes e os queijos suportando a caixa de ovos, os pacotes de arroz e feijão acolchoando a leveza dos biscoitos. Andei pelos corredores de gêneros variados mas já não escolhi nada. Nem sequer passei os olhos pela lista que a empregada me entregara ao sair de casa. Prestei muita atenção em todas as coisas, aquelas naturezas mortas, oferecendo-se. A vitrine das carnes, os buchos e fígados, a nobreza dos filés, rubores suspensos iluminados de uma claridade valorativa de suas nuances de sangue. As laranjas, as batatas, os abacaxis, os grandes balcões de salgados, carnes secas, toucinhos, despojos de seres mortos e conservados num requinte de temperos. As caixinhas de gelatina, com as frutas impressas em cores inesquecíveis, disfarçando os sabores artificiais que a empregada atenuaria com frutas e cremes de baunilha e morango, com claras batidas e outros recursos de enriquecer aquelas doçuras transparentes e monótonas.

Não procurei meu marido, embora imaginasse que num momento esbarraria com ele e Heloisa, sabendo que estariam falando do jardim, das plantas exóticas que Heloisa tinha o dom de descobrir em chácaras distantes. Ou então de uma raça de galinhas poedeiras, cujos ovos de grande valor nutritivo não poderiam ser comparados àqueles de gema vermelha, que eu tinha escolhido mecanicamente no correr da tarde. Não é que Heloisa quisesse comparativamente me subestimar, mas ela era assim, e eu é que me subestimava junto dela. Se é que a Heloisa que meu marido fora saudar era aquela que eu supunha.

Passei duas horas andando com aquele carrinho, sem acrescentar um grão ao já escolhido. Parei na lanchonete e comi uma coxinha de galinha. A fome pousada em meu lábio não determinou o menor luxo seletivo. Comi a coxinha de galinha como podia ter comido o cachorro quente ou o rizzoli, só para sobreviver. Pensei num momento em procurar meu marido mas desisti "ele deve estar falando com Heloisa". Olhei o pátio do supermercado e vi nosso carro. Ele está com a chave. Vasculhei a bolsa de dinheiro e verifiquei que a chave estava comigo. Eu não dirigia há tanto tempo. Ele voltaria? Que importância tinha isso, eu precisava ir embora. Foi o guarda que me alertou "vai fechar". Eu era a última freguesa a andar por aqueles corredores e notei que as moças das caixas me olhavam com ar cansado e irritado. Estavam tão tristes que eu tive vontade de chorar, de lamentar seu destino vendido tão barato, horas e horas apertando botões de máquinas registradoras em troca do dinheiro da passagem e da comida. Vi-as todas muito humilhadas, mas ainda pela necessidade de aceitarem o jogo daquela maneira enquanto invisíveis e gordos os donos das alcachofras e dos presuntos rolavam entre os lábios charutos de Havana.

Paguei e saí. Onde estaria meu marido? E Heloisa? Coloquei as compras no carro e rodei pelo bairro, tentando reconhecer um ou outro. Depois decidi ir para casa.

A empregada me recebeu como se nada tivesse acontecido, sequer me perguntando pelo adiantado da hora. Recolheu as compras e preparou-me o banho. Mergulhei na banheira de água quente. Quase adormeci. A água, ao esfriar, fez-me voltar à realidade. Fui para cama. O telefone não tocou. No dia seguinte muito cedo voltei ao supermercado sem ter contado a ninguém o acontecido. Tive medo de estar sendo ridícula, ou louca. Que me dissessem de repente "Que marido?". Ou, o que era pior, "olha ele ali". Fiquei todo o tempo rodando entre aqueles corredores, como se fosse coisa dali, uma das moças das caixas, ou mesmo uma das máquinas registradoras. Saí, no fim do expediente, sem ter comprado nada.

No terceiro dia é que eu descobri que o supermercado tinha andares diversos, escadas rolantes. Andei de cima para baixo, de baixo para cima, e parecia que os lugares eram sempre outros, como num labirinto. Fiquei feliz de andar por caminhos novos, onde poderia esbarrar com meu marido e ouvir ele dizer "— Que sorte você chegar já ia ao seu encontro". Eu sabia que isso não ia acontecer porque meu marido e Heloisa deveriam estar como eu, perdidos naquele labirinto, com espelhos multiplicando as caixas das douradas uvas, e os pêssegos e nêsperas tocadas de raras abelhas. Comecei a sentir que me desprendia dos valores antigos, e que só me interessava trilhar aquele caminho sem fim, no qual ele estaria sempre adiante, e eu atrás, sem ponto de encontro, sem retorno. Eu teria sonhado a minha vida? Ou estaria agora entrando num sonho maior? Senti-me tonta, percebi que minha roupa estava suja e que a urina corria pelas minhas pernas abaixo. Senti o grande peso da solidão, pela primeira vez. Indaguei a mim mesma qual o caminho a seguir, mas antes de me responder vi que me amparavam e levavam para determinado lugar, um lugar muito branco, com uma mesa muito branca onde eu comecei a adormecer. Deixei que cuidassem de mim, com um sorriso de infantil prazer me corrigindo os lábios. Quando voltei a mim já não reconheci o mundo que me davam. Estava cada vez mais longe dele, mais longe. Buscando encontrá-lo e me distanciando, de tal maneira que se o visse agora talvez nem reconhecesse.



Walmir Félix Solano Ayala, poeta, romancista, crítico de arte, contista, memorialista e autor de literatura infantil, nasceu em Porto Alegre (RS) no dia 04/01/1933. Seu primeiro livro, "Face dispersa", foi publicado em 1955. Em 1956 mudou-se para a cidade do Rio de Janeiro. Dentre suas mais de cem obras, destacamos: "Diário I (Difícil é o Reino)"; "A Beira do Corpo" (romance); "Chico Rei e a Salamanca do Jarau" (teatro); "A Toca da Coruja" (literatura infantil, Prêmio Nacional de Literatura Infantil do INL)"; "Ponte Sobre o Rio Escuro" (contos, Prêmio Nacional de Ficção do INL) e "A fuga do Arcanjo" (diário íntimo). O intelectual ora enfocado faleceu na cidade do Rio de Janeiro (RJ) em 28/08/1991.


O texto acima foi extraído da antologia "Ficção - Histórias para o prazer da leitura", Editora Leitura - 2007, pág. 266, organização de Miguel Sanches Neto.

domingo, 2 de março de 2014

DEPOIS DO CARNAVAL VEM A QUARESMA...


... Mula sem cabeça...lobisomem...
Mula sem cabeça e lobisomem estão entre os mitos e costumes já assustaram muitas crianças e adultos no período de preparação até a Páscoa
Irati - Várias lendas e crendices permeiam o imaginário popular no período da Quaresma, os quarenta dias desde a quarta-feira de cinzas até a quinta-feira da Semana Santa. Hoje, essas tradições folclóricas estão bem mais reduzidas, acabaram se perdendo com o tempo. Porém, para pessoas mais velhas, e em alguns lugares no interior, a Quaresma ainda é um período de recolhimento, oração, e de dormir cedo, principalmente na sexta-feira, pois, acredita-se que nesse dia a mula sem cabeça e o lobisomem estão soltos no mundo.

A dona de casa Etelvina Bendo, hoje com 65 anos, lembra que quando era jovem, as tradições da Semana Santa eram seguidas a risca na sua casa. “Minha mãe sempre contava que se passasse na Sexta-Feira Santa perto de um cemitério, você iria ver algum morto caminhando, além disso, durante toda sexta-feira da Quaresma não podia sair à noite que poderia ver o lobisomem. E dançar, só até a meia noite da quarta-feira de cinzas, se passasse disso, você poderia ver o demônio. A mãe dizia assim: pula, pula até meia noite, porque depois o diabinho aparece. E, se a mãe descobrisse que passamos da meia-noite no carnaval, era castigo em certa”.  Costumes como esse eram seguidos em muitos locais, e para quem não obedecesse o castigo vinha, se não fosse obra do acaso era dado em casa, pelos pais.

“Na Sexta-Feira Santa era proibido olhar no espelho porque viria outra imagem, algo horripilante, como a figura do próprio demônio. Também não se podia ouvir rádio, cantar, assobiar, ou, qualquer coisa que demonstrasse alegria”. Assim era a Quaresma, e principalmente a Semana Santa, na casa de Murilo Walter Teixeira, 74, que se recorda da infância, quando em sua casa, vários costumes e crendices eram respeitados durante esse período.

Muitas outras são as lendas da Quaresma, que variam de região para região. A seguir, algumas das mais comuns e dos costumes que eram respeitados no período.
A Mula sem cabeça – Reza a lenda que a mula sem cabeça é uma mulher que devora cadáveres nos cemitérios ou se alimenta de sangue humano. Nas noites de sexta-feira da Quaresma e durante toda a Semana Santa, a mula sem cabeça fica solta, correndo pelos campos e até dentro das cidades. E que ninguém veja a mula, pois, se ver e ficar olhando, fica maluco.
Outro que amedronta nesse período é o Lobisomem. Apesar de ser conhecido também em outras partes do mundo, o lobisomem brasileiro é um pouco diferente dos de outros lugares. No Brasil, o lobisomem é um homem pálido, de aspecto doentio e que por ser filho de incesto ou por ter nascido depois de uma série de sete filhas, é condenado pelo destino a virar lobo, cachorro, bezerro ou porco, em dias e horas determinadas (geralmente as terças e sextas-feiras, de meia-noite às duas horas da madrugada e principalmente na Semana Santa e Quaresma). Depois de transformado,  têm que fazer suas corridas: visitar sete cemitérios, sete colinas, sete encruzilhadas, sete igrejas, para voltar a ter forma humana.
A procissão dos mortos: Na noite de Sexta-Feira Santa, há uma crença que fala de uma espécie de procissão dos mortos. Segundo ela, os mortos saem dos cemitérios, todos vestidos de branco, saudando o aparecimento do Cristo entre eles, tal como aconteceu depois que Jesus morreu no Monte Calvário e que centenas de mortos ressuscitaram. Dizem que só vê a procissão dos mortos quem sai à noite de Sexta-Feira Santa para festar.
A Sexta-Feira da Paixão é a que mais é alvo da crendice e superstição popular.  Na Sexta-Feira Santa não se pode fazer nada, sob pena de castigo. “Se pregar alguma coisa nesse dia, seria o mesmo que estar pregando Cristo na cruz, dizem os mais antigos; um homem foi caçar nesse dia e acertou um veado pardo, quando se aproximou viu que matou seu próprio filho; outro que também foi caçar acertou uma capivara, cujo tiro acertou no meio do animal e uma parte do bicho continuou correndo para um lado e outra para outro lado; dançar no tempo da Quaresma cria rabo ou pés de cabra, igual às do demônio”, eram as histórias que o professor de história Ariel José Pires mais ouvia a respeito da Quaresma quando criança.

Outra tradição de muitos fiéis católicos era jejuar, com abstinência de carne em todas as quartas e sextas de Quaresma e na Semana Santa inteira. Hoje, esse costume caiu bastante em desuso e não é uma imposição da igreja.
Segundo outra tradição, nesse dia não se pode cortar a unha, se o ato for feito, dependendo da região do país, acredita-se que “faz unheiro”, ou “dá dor de dente”, ou “dá inflamação nos dedos”. Não se varre a casa, porque “faz mal”, ou porque “se varre os cabelos de Nosso Senhor”, ou, para não alvoroçar os bichos ruins; escorpiões, aranhas, etc. Também em tal dia, não se deve fazer a barba, nem pentear o cabelo. E “o café será tomado amargo, porque os judeus deram a Jesus fel amargurado”. Para muitas pessoas, trabalhar nesse dia então, nem pensar.
O dia da malvadeza: É na Quinta-feira Santa, quando começa a anoitecer. Bandos de foliões invadem currais, soltam o gado, enxotam as galinhas, estragam plantações. Fazem, enfim, qualquer tipo de malvadeza. Isso é praticado principalmente em fazendas.
Furtos da Sexta-Feira Santa: Em alguns lugares era costume roubar na noite de sexta-feira e dizia-se que não era pecado, porque o Senhor estava morto e não podia ver. O roubo, porém, nunca se efetivava para prejudicar alguém, roubavam frangos e depois levavam à casa do dono, no geral um conhecido, para que fossem preparados para o banquete de Aleluia. Os principais alvos dos roubos eram galinheiros.
Malhação do Judas: É uma tradição malhar o Judas no Sábado de Aleluia. E em muitas cidades do Brasil esse costume ainda é mantido. O motivo da malhação de um boneco que representa o Judas. É uma espécie de vingança do que ele fez para Jesus, é demonstração de revolta pela atitude do traidor.

 

Texto: Glarin Bif da Redação, com informações de http://www.jangadabrasil.com.br