quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

O MENINO SEM PASSADO- Murilo Mendes


Monstros complicados
não povoaram meus sonhos de criança
porque o saci-pererê não fazia mal a ninguém
limitando-se moleque a dançar maxixes desenfreados
no mundo das garotas de madeira
que meu tio habilidoso fazia para mim.

A mãe-d’água só se preocupava
em tomar banhos asseadíssima
na piscina do sítio que não tinha chuveiro.

De noite eu ia no fundo do quintal
pra ver se aparecia um gigante com trezentos anos
que ia me levar dentro dum surrão,
mas não acreditava nada.

Fiquei sem tradição sem costumes nem lendas
estou diante do mundo
deitado na rede mole
que todos os países embalançam.

 LEITURA SUGERIDA PELA MINHA AMIGA LILIKA
Livro: Poemas - Murilo Mendes
Páginas: 128
Ano de lançamento: 2014
Editora: Cosac Naify


quarta-feira, 21 de janeiro de 2015

4º ANIVERSARIO DO CLUBE DA LEITURA!



Poema de Aniversário
 Carlos Drummond de Andrade
Quem teve a ideia de cortar o tempo em fatias,
 a que se deu o nome de ano,
foi um indivíduo genial.
Industrializou a esperança,
fazendo-a funcionar no limite da exaustão.
Doze meses dão para qualquer ser humano se cansar e entregar os pontos.
Aí entra o milagre da renovação e tudo começa outra vez,
 com outro número e outra vontade de acreditar que daqui pra diante vai ser diferente.

A idade de ser feliz -  Geraldo Eustáquio de Souza
Existe somente uma idade para a gente ser feliz.
Somente uma época na vida de cada pessoa
em que se pode sonhar e fazer planos,
e ter energia bastante para realizá-los,
a despeito de todas as  dificuldade e obstáculos.
Uma só idade para a gente se encontrar com a vida
e viver apaixonadamente,
com o entusiasmo dos amantes
e a coragem dos aventureiros.
Fase dourada em que se pode criar e recriar a vida
à imagem e semelhança
dos nossos desejos;
e sorrir e cantar, e brincar e dançar,
e vestir-se com todas as cores
e experimentar todos os sabores
e desfrutar de tudo com toda a intensidade,
sem preconceito nem pudor.
Tempo em que cada limitação humana
é só mais um convite ao crescimento;
um desafio a lutar com toda energia
e a tentar algo novo, de novo e de novo
e quantas vezes for preciso.
Essa idade tão especial e tão única
chama-se presente...
E tem apenas a duração do instante que passa... 

Mais um ano- Rubem Alves
A celebração de mais um ano de vida é a celebração de um desfazer,
 um tempo que deixou de ser, não mais existe.
 Fósforo que foi riscado. Nunca mais acenderá.
Daí a profunda sabedoria do ritual de soprar as velas em festa de aniversário.
 Se uma vela acesa é símbolo de vida, uma vez apagada ela se torna símbolo de morte.


domingo, 11 de janeiro de 2015

No ano passado...Mario Quintana

Já repararam como é bom dizer "o ano passado"? É como quem já tivesse atravessado um rio, deixando tudo na outra margem...Tudo sim, tudo mesmo! Porque, embora nesse "tudo" se incluam algumas ilusões, a alma está leve, livre, numa extraodinária sensação de alívio, como só se poderiam sentir as almas desencarnadas. Mas no ano passado, como eu ia dizendo, ou mais precisamente, no último dia do ano passado deparei com um despacho da Associeted Press em que, depois de anunciado como se comemoraria nos diversos países da Europa a chegada do Ano Novo, informava-se o seguinte, que bem merece um parágrafo à parte:

"Na Itália, quando soarem os sinos à meia-noite, todo mundo atirará pelas janelas as panelas velhas e os vasos rachados".

Ótimo! O meu ímpeto, modesto mas sincero, foi atirar-me eu próprio pela janela, tendo apenas no bolso, à guisa de explicação para as autoridades, um recorte do referido despacho. Mas seria levar muito longe uma simples metáfora, aliás praticamente irrealizável, porque resido num andar térreo. E, por outro lado, metáforas a gente não faz para a Polícia, que só quer saber de coisas concretas. Metáforas são para aproveitar em versos...

Atirei-me, pois, metaforicamente, pela janela do tricentésimo-sexagésimo-quinto andar do ano passado.
Morri? Não. Ressuscitei. Que isto da passagem de um ano para outro é um corriqueiro fenômeno de morte e ressurreição - morte do ano velho e sua ressurreição como ano novo, morte da nossa vida velha para uma vida nova.