Entre
os mitos da rua Direita existe um outro que vive nos quintais das casas de
residência. Geralmente os quintais dessa rua, são pequenos, com um mesmo tipo
retangular, cercados de muros e mais ou menos enfeitados de fruteiras. Nesta
área restrita habita a alma de gato. Não tem hora para aparecer às crianças
desobedientes. É uma sombra que passa numa esquina de parede; uma sombra que de
repente se some atrás de uma porta ou de um móvel, ou que faz uma árvore do
jardim balançar levemente; ou ainda um barulho que se ouve perto ou longe. Tudo
serve. A alma de gato dispõe de uma agilidade rara. Durante o dia apenas se vê
o impreciso. Ou, melhor: nada se vê, sente-se. A sensibilidade é que fica
alerta e colhe os movimentos como se fora antena de rádio.
A luz do dia desencanta o mistério, tornando a vida mais real. Mas quando entra a noite, com todo o seu cortejo de bruxos, então é que a alma de gato começa a ser notada materialmente. Não se espantem: materialmente. Ela mostra toda a conformação física de um gato comum. Gato preto. Os olhos destilam luminosidades de fogo. A luz desses olhos é vermelha — e é de tanta intensidade que parece originária de archotes. O destino desse bicho não é arranhar, morder ou ocasionar males semelhantes. O seu destino tem formas mais suaves. Ele só se apresenta para despertar medo aos meninos. O seu vulto rápido na apresentação consegue obter o milagre de respeito só comparável a outros mitos de grande influência na imaginação infantil. O prestígio da alma de gato toma conta de toda uma casa, principalmente o quintal, onde vive e reina com poderes imperiais. Com o dia o menino brinca solto e feliz no quintal de sua casa. A alma do gato anda por longe, nem se sente o menor sintoma. Porém, de súbito o vento balança fortemente o arvoredo e, se alguém disser alguma palavra sobre assombração, ou olhar cheio de curiosidade para um ponto qualquer, é o bastante — todos se lembram logo da alma de gato, enquanto uma onda dec receio se avoluma e se ergue ameaçadora. Quando chega a noite, o fantasma fica senhor absoluto dos quintais. Nenhum menino tem coragem de ir lá fora sem ser acompanhado de gente grande. Não vai. Mesmo que a noite não seja escura, que a lua ilumine e dissipe as sombras, ainda assim o quintal se acha invadido do mistério da alma de gato, não sendo raro se notar um moviniento, por mais sutil, que venha a confirmar a existência do mito. Às vezes é mesmo um gato que passa, ou um morcego que chia ou que põe abaixo um sapoti. Os gatos da rua Direita são uns danados durante a noite. Fazem correrias medonhas. Afastam as telhas dos seus lugares. Brigam, só brigam por amor. Fazem uma gritaria infernal. E a raça cada vez mais se multiplica. A população de gatos anda quase em parelha com a população de gente. Esse barulho noturno é que mais infunde respeito e receio às crianças. Então, quando não podem dormir, e que a insônia lhes toma todas as preocupações, fazendo-as ficar de olho duro e enxuto, a rumorosa batalha dos gatos tem uma significação terrível. Raro é o menino que fica no seu berço ou que não reclama uma pessoa maior ao seu lado. A alma de gato toma posição e demonstra prestígio avassalador ao lado de outros duendes. A conseqüência desse temor traz certo descanso aos pais, principalmente às criadas, que são as que mais fazem ameaças e que, a todo momento, lembram os poderes extraordinários do mito animal. O estranho nisso tudo é que nenhum malefício físico imaginário se pode esperar. Não é como outros fantasmas que acenam com a morte, que costumam carregar as crianças para longe, ameaçando, fazendo longas e maçantes viagens. A alma de gato é como se fora alma do outro mundo: só faz medo e mais nada; nem sequer se usa da velha frase: "Ele vem buscar você".
(Vidal,
Ademar. Lendas e superstições;
contos populares brasileiros. Rio de Janeiro, Empresa Gráfica O
Cruzeiro, 1950, p.33-34)
|
quinta-feira, 25 de outubro de 2012
ALMA DE GATO -Ademar Vidal
Assinar:
Postar comentários (Atom)
3 comentários:
Querida Suse e alunos da EMEF Marili Dias!! Parabéns!!!!!
Parabéns pelo LIVRO KIZOMBA LITERÁRIA NA EMEF MARILI DIAS!! Que Deus os abençoe muito! Que tremendo é ver esse sucesso!Suse, você é nosso orgulho de profissional educador, sabia? Desejo cada dia mais o seu sucesso! Parabéns, amada!
Carinhosamente,
Sandra Reis
gostei da historinha;alma de gato rs...vou contar para meus netinhos, eles vão gostar de aber que no quintal da vovó tem um gato preto,que não é igual os outros; este tem alma rs...
Eu amo gato, só não entendo porque as histórias de gato são agorentas. Alguém sabe explicar?
Postar um comentário