E
o homem trouxesse sua mulher, e os dois ficassem entre os amigos e
amigas do vizinho entoando canções para agradecer a Deus o brilho das
estrelas e o murmúrio da brisa nas árvores, e o dom da vida, e a amizade
entre os humanos, e o amor e a paz."
sábado, 7 de setembro de 2013
Recado ao Senhor 903 -Rubem Braga
VIZINHO
Quem
fala aqui é o homem do 1003. Recebi outro dia, consternado, a visita do
zelador do prédio, que me mostrou a carta em que o senhor reclamava
contra o barulho em meu apartamento. Recebi depois a sua própria visita
pessoal - devia ser meia-noite - e a sua veemente reclamação verbal.
Devo dizer que estou desolado com tudo isso, e lhe dou inteira razão. O
regulamento do prédio é explícito e, se não o fosse, o senhor ainda
teria ao seu lado a lei e a polícia. Quem trabalha o dia inteiro tem
direito ao repouso noturno e é impossível repousar no 903 quando há
vozes, passos e músicas no 1003. Ou melhor: é impossível ao 903 dormir
quando o 1003 se agita; pois como não sei o seu nome nem o senhor sabe o
meu, ficamos reduzidos a ser dois números, dois números empilhados
entre dezenas de outros. Eu, 1003, me limito a leste pelo 1005, a oeste
pelo 1001, ao sul pelo Oceano Atlântico, ao norte pelo 1004, ao alto
pelo 1103 e embaixo pelo 903 que é o senhor. Todos esses números são
comportados e silenciosos; apenas eu e o Oceano Atlântico fazemos ruído e
funcionamos fora dos horários civis; nós dois apenas nos agitamos e
bramimos ao sabor da maré, dos ventos e da lua. Prometo sinceramente
adotar, depois das 22 horas, de hoje em diante, um comportamento de
manso lago azul. Prometo. Quem vier à minha casa (perdão, ao meu número)
será convidado a se retirar às 21:45, e explicarei: o 903 precisa
repousar das 22 às 7 pois às 8 deve deixar o 783 para tomar o 109 que o
levará até o 527 de outra rua, onde ele trabalha na sala 305. Nossa vida,
vizinho, está toda numerada, e reconheço que ela só pode ser
tolerável quando um número não incomoda outro número, mas o respeita,
ficando dentro dos limites de seus algarismos. Peço-lhe desculpas - e
prometo silêncio.
Mas que me seja permitido sonhar
com outra vida e outro mundo, em que um homem batesse à porta do outro e
dissesse: "Vizinho, são três horas da manhã e ouvi música em tua casa.
Aqui estou". E o outro respondesse: "Entra, vizinho, e come de meu pão e
bebe de meu vinho. Aqui estamos todos a bailar e cantar, pois
descobrimos que a vida é curta e a lua é bela".
(Rubem Braga. "Para gostar de ler". São Paulo: Ática, 1991)
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