O Gato de Botas é um conto de fadas publicado por Charles Perrault em 1697. Os irmãos Grimm também publicaram uma versão desse conto. O gato ficou muito famoso por sua participação na animação Shrek.
Usarei para a análise a versão dos Grimm. O conto nos fala sobre o filho caçula de um moleiro que herda do pai um gato de estimação, enquanto os mais velhos herdam o moinho e um burro. O rapaz, que ficou indignado com a escolha, descobre que o gato fala e este lhe pede um par de botas.
Ao ganhar as botas o gato consegue convencer um rei muito poderoso de que pertence a um conde, e assim consegue ao seu dono a mão da princesa em casamento e com a morte do rei, o rapaz herda o trono.
O moleiro é uma figura interessante! Sob o ponto de vista de um camponês ele seria uma pessoa que não trabalha de verdade, pois ele usa a astúcia para fazer os elementos da natureza trabalharem para ele. A inteligência do moleiro o aproxima do deus Hermes, no entanto essa inteligência pode ser usada tanto para o bem como para o mal.
Ele possui três filhos homens e nada é mencionado a respeito de uma esposa. Podemos observar aí que falta o elemento feminino e existe, portanto, um exagero na atitude masculina. O pai morre essa totalidade masculina é quebrada, fragmentada.
O gato é um animal associado comumente ao feminino. No Egito antigo tínhamos a deusa Bastet, representada com cabeça de gato, que estava associada à fertilidade e era protetora das mulheres. Em uma das lendas gregas, a deusa Artemis, protetora das mulheres, se transforma em gato para fugir para o Egito.
A deusa Hécate também se transformou em gato. A nórdica Freya, deusa da sensualidade, do sexo, da beleza e do amor, tinha seu carro puxado por dois gatos.
O gato então está associado à Lua, à feitiçaria e às bruxas. Muitos gatos foram queimados durante a Inquisição, pois juntamente com o feminino ele passou a ser associado somente ao lado demoníaco e seu lado criativo e fecundo reprimido.
Além disso, o gato está associado à consciência e a independência.
Podemos supor então, que no conto, o gato – apesar de ser macho - representa os aspectos do feminino reprimido, como a sua sexualidade, sua individualidade, independência, a intuição e astúcia.
O gato de botas está ligado também a figura de Hermes – afinal ele provém do pai do rapaz – e por essa razão ele faz o papel de psicopompo do rapaz. Psicopompo é uma palavra que tem origem no grego psychopompós, junção de psyché (alma) e pompós (guia) e designa um ente cuja função é guiar ou conduzir a percepção de um ser humano entre dois ou mais eventos significantes.
Ele é um guia, um ente que leva o rapaz ao encontro do seu feminino e da sua personalidade mais profunda. O gato, então pode ser considerado um símbolo da união do princípio feminino e masculino.
Temos então a figura do rei com a sua filha (nesse reino também não há rainha). O rei nos contos de fadas costuma estar doente, ou velho e precisa de um substituto. No caso do conto o substituto, não é um rapaz nobre, mas alguém da camada mais pobre, que usa de astúcia e inteligência, o que é algo extremamente incomum nos contos de fadas.
A origem humilde do herói significa que a renovação da consciência vem de aspectos ignorados e desprezados pela consciência.
Em termos pessoais vemos esses aspectos desprezados na função inferior de cada indivíduo. No conto podemos supor que a função pensamento é extremamente valorizada, ao ponto do exagero, enquanto que a sua oposta, o sentimento (muitas vezes associada ao feminino) foi desvalorizada.
O conto Gato de Botas possui um caráter duvidoso, pois o herói consegue as coisas por meio da astúcia do gato. Mas todos os conteúdos do inconsciente possuem um caráter amoral. A consciência é que separa em bem e mal.
E por isso o conto nos traz uma importante lição: a da esperança de que mesmo o mais medíocre pode ter sucesso na vida. E que muitas vezes aquilo que nos parece mal pode ser o bem e o que parece bem pode ser um grande mal. Mas que o mais importante para prosperarmos é estarmos em conexão com nosso eu mais profundo, com nossas intuições e instintos e que devemos buscar ouvir o nosso inconsciente para conhecermos essa realidade profunda.
Por HELLEN REIS MOURAO : Analista junguiana. Formada em psicanálise e psicologia analítica. Especializada em Mitologia e Contos de Fadas.
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