sexta-feira, 30 de maio de 2014

Inveja- Diego Engenho Novo





Eu tenho profunda inveja de quem aceita, de quem acalma o próprio coração, de quem não tem tempo pra pensar demais. De quem é raso, de quem ri de tudo, de quem não faz questão de entender. Eu tenho profunda inveja de quem é fútil, de quem é monopolizado pela lógica cartesiana das coisas, de quem é bitolado pela fé cega, de quem é adestrado por deuses maus.
Eu tenho, profunda e confessa inveja de quem não viaja no tempo, não sofre pelo amanhã, não se lembra do que comeu. A minha memória, por mais curta que seja, também é seletiva. Ela se esquece de compromissos, receitas, senhas, mas jamais de sentimentos.
A minha vida, me é contada como se fosse a história de um estranho que mora no apartamento ao lado. A minha própria história se vai perdida, mas ali, no meio daqueles vultos de lembranças, eu ainda consigo enxergar a dor, a doçura, a euforia, as saudades que senti.
Admito que tenho inveja, de quem sonha com casa de pé direito alto, carro do ano e roupas caras. Isso tudo parece tão palpável. O que eu quero talvez nem exista. Seria eu bem mais feliz se pudesse parcelar a paz em doze no cartão.
Fico olhando para os casais embriagados, passionais, que brigam se descabelam, fazem ameaças de vida e morte e, no instante seguinte, se beijam loucamente. Eu tenho uma inveja tão grande de quem não pensa no sentido das coisas, de quem não remói, não digere, de quem não guarda nada além de objetos. Que inveja eu tenho de quem vive um bolero.
Eu tenho inveja das pessoas imediatistas que comem quando há fome, bebem quando há sede, ligam quando há saudade. Eu sou do tipo cansado que antes da primeira mordida sofre conflitos, lembra de viagens, pensa em quem não está comendo, conta as calorias e se pergunta quem inventou o tomate seco. Eu bebo quase me afogando, brinco com a garrafa, leio rótulos, eu me molho como uma criança sem coordenação, penso na pedra que vai se formando nos meus rins, na infância, nas aulas de química. Eu como, bebo e penso demais.
A minha mente é inquieta e barulhenta. Nada resolve, nada a cala. Nem remédio, nem meditação. A minha mente é carente, conversadeira, é moça nova, velha maluca. Lá vou eu dormir e ela continua tagarelando. Eu tenho profunda inveja de quem tem a alma muda, monossilábica, alma antipática. Das mentes que não cantam Vinicius, nem Elis, mas tche-tchere-rês. Eu tenho inveja, inveja das grandes, de quem tem a ignorância como aliada. A minha cabeça nunca se cala. A minha cabeça nunca se cala.

domingo, 25 de maio de 2014

O Príncipe Desencantado

O primeiro beijo foi dado por um príncipe numa princesa que estava dormindo encantada há cem anos. Assim que foi beijada, ela acordou e começou a falar:
            — Muito obrigada, querido príncipe. Você por acaso é solteiro?
            — Sim, minha querida princesa.
            — Então nós temos que nos casar já! Você me beijou e afinal de contas não fica bem, não é mesmo?
            — É... querida princesa.                                              
            — Você tem um castelo, é claro.
            — Tenho... princesa.
            — E quantos quartos tem o seu castelo, posso saber?
            — Trinta e seis.
            — Só? Pequeno, hein! Mas não faz mal, depois a gente faz umas reformas... Deixa eu pensar quantas amas eu vou ter que contratar... Umas quarenta eu acho que dá!
            — Tantas assim?
            — Ora, meu caro, você não espera que eu vá gastar as minhas unhas varrendo, lavando e passando, não é?
            — Mas quarenta amas!
            — Ah, eu não quero nem saber. Eu não pedi para ninguém vir aqui me beijar, e já vou avisando que quero umas roupas novas, as minhas devem estar fora de moda, afinal, passaram-se cem anos, não é mesmo? E quero uma carruagem de marfim, sapatinhos de cristal e... e... jóias, é claro! Eu quero anéis, pulseiras, colares, tiaras, coroas, cetros, pedras preciosas, semipreciosas, pepitas de ouro e discos de platina!
            — Mas eu não sou o rei das Arábias, sou apenas um príncipe...
— Não me venha com desculpas esfarrapadas! Eu estava aqui dormindo e você veio e me beijou e agora vai querer que eu ande por aí como uma gata borralheira? Não, não e não, e outra vez não e mais uma vez não!
            Tanto a princesa falou, que o príncipe se arrependeu de ter ido lá e a beijado. Então, teve uma idéia. Esperou a princesa ficar distraída, se jogou sobre ela e deu outro beijo, bem forte. A princesa caiu imediatamente em sono profundo, e dizem que até hoje está lá adormecida. Parece que a notícia se espalhou e os príncipes passam correndo pela frente do castelo onde ela dorme, assobiando e olhando para o outro lado.
                                                         

Flávio de Souza. Príncipes e princesas, sapos e lagartos.

São Paulo, FTD, 1993.

domingo, 18 de maio de 2014

VINICIUS DE MORAES & AMOR



Soneto do Amor Total

Amo-te tanto, meu amor ... não cante
O humano coração com mais verdade ...
Amo-te como amigo e como amante
Numa sempre diversa realidade.

Amo-te afim, de um calmo amor prestante
E te amo além, presente na saudade.
Amo-te, enfim, com grande liberdade
Dentro da eternidade e a cada instante.

Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.

E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.




Pela luz dos olhos teus

Quando a luz dos olhos meus
E a luz dos olhos teus
Resolvem se encontrar
Ai que bom que isso é meu Deus
Que frio que me dá o encontro desse olhar
Mas se a luz dos olhos teus
Resiste aos olhos meus só p'ra me provocar
Meu amor, juro por Deus me sinto incendiar
Meu amor, juro por Deus
Que a luz dos olhos meus já não pode esperar
Quero a luz dos olhos meus
Na luz dos olhos teus sem mais lará-lará
Pela luz dos olhos teus
Eu acho meu amor que só se pode achar
Que a luz dos olhos meus precisa se casar.

quinta-feira, 1 de maio de 2014

RESPOSTA DE UM NEGRO



Mesquinhez, sim é mesquinhez!




falar de negros como se não fora gente,



porque embora com a epiderme negra,



é como o branco que tem alma e sente.





Fala língua! Porque tu és carne



por isso mesmo hás de perecer,



ficando a alma imortal sem cor,



que os nossos olhos não a podem ver.





A pele é negra, sim, esta nós vemos,



porém apenas distingue a raça;



com a pele negra posso ter por dento,



um'alma branca como o é a garça.





Embora negra seja a minha pele,



meu interior é alvo como o lírio,



por isso quando depreciam a um negro,



saio sorrindo sem sofrer martírio.





Sou negro sim, disto me orgulho,



meu sangue é puro, é sangue varonil,



se meu país é grande e valoroso,



se deve ao negro isto que é o BRASIL.





O negro é forte resiste às intempéries,



chuva, sol, sereno, frio, calor,



trabalha sempre sem cansar os braços,



porque o negro trabalha por amor.





Por amor, sim, amor à liberdade



que lhe fora devolvida um dia,



pela Princesa que assinou a LEI,



chamada ÁUREA, a Lei da Alforria.





De Joelson Araújo Matos Itabuna - BA - por correio eletrônico
http://www.mundojovem.pucrs.br/


domingo, 20 de abril de 2014

O amor acaba Por Paulo Mendes Campos




O amor acaba. Numa esquina, por exemplo, num domingo de lua nova, depois de teatro e silêncio; acaba em cafés engordurados, diferentes dos parques de ouro onde começou a pulsar; de repente, ao meio do cigarro que ele atira de raiva contra um automóvel ou que ela esmaga no cinzeiro repleto, polvilhando de cinzas o escarlate das unhas; na acidez da aurora tropical, depois duma noite votada à alegria póstuma, que não veio; e acaba o amor no desenlace das mãos no cinema, como tentáculos saciados, e elas se movimentam no escuro como dois polvos de solidão; como se as mãos soubessem antes que o amor tinha acabado; na insônia dos braços luminosos do relógio; e acaba o amor nas sorveterias diante do colorido iceberg, entre frisos de alumínio e espelhos monótonos; e no olhar do cavaleiro errante que passou pela pensão; às vezes acaba o amor nos braços torturados de Jesus, filho crucificado de todas as mulheres; mecanicamente, no elevador, como se lhe faltasse energia; no andar diferente da irmã dentro de casa o amor pode acabar; na epifania da pretensão ridícula dos bigodes; nas ligas, nas cintas, nos brincos e nas silabadas femininas; quando a alma se habitua às províncias empoeiradas da Ásia, onde o amor pode ser outra coisa, o amor pode acabar; na compulsão da simplicidade simplesmente; no sábado, depois de três goles mornos de gim à beira da piscina; no filho tantas vezes semeado, às vezes vingado por alguns dias, mas que não floresceu, abrindo parágrafos de ódio inexplicável entre o pólen e o gineceu de duas flores; em apartamentos refrigerados, atapetados, aturdidos de delicadezas, onde há mais encanto que desejo; e o amor acaba na poeira que vertem os crepúsculos, caindo imperceptível no beijo de ir e vir; em salas esmaltadas com sangue, suor e desespero; nos roteiros do tédio para o tédio, na barca, no trem, no ônibus, ida e volta de nada para nada; em cavernas de sala e quarto conjugados o amor se eriça e acaba; no inferno o amor não começa; na usura o amor se dissolve; em Brasília o amor pode virar pó; no Rio, frivolidade; em Belo Horizonte, remorso; em São Paulo, dinheiro; uma carta que chegou depois, o amor acaba; uma carta que chegou antes, e o amor acaba; na descontrolada fantasia da libido; às vezes acaba na mesma música que começou, com o mesmo drinque, diante dos mesmos cisnes; e muitas vezes acaba em ouro e diamante, dispersado entre astros; e acaba nas encruzilhadas de Paris, Londres, Nova Iorque; no coração que se dilata e quebra, e o médico sentencia imprestável para o amor; e acaba no longo périplo, tocando em todos os portos, até se desfazer em mares gelados; e acaba depois que se viu a bruma que veste o mundo; na janela que se abre, na janela que se fecha; às vezes não acaba e é simplesmente esquecido como um espelho de bolsa, que continua reverberando sem razão até que alguém, humilde, o carregue consigo; às vezes o amor acaba como se fora melhor nunca ter existido; mas pode acabar com doçura e esperança; uma palavra, muda ou articulada, e acaba o amor; na verdade; o álcool; de manhã, de tarde, de noite; na floração excessiva da primavera; no abuso do verão; na dissonância do outono; no conforto do inverno; em todos os lugares o amor acaba; a qualquer hora o amor acaba; por qualquer motivo o amor acaba; para recomeçar em todos os lugares e a qualquer minuto o amor acaba.

sexta-feira, 18 de abril de 2014

Chatear e encher-crônica de Paulo Mendes Campos









Um amigo meu me ensina a diferença entre chatear e encher. Chatear é assim: você telefona para um escritório qualquer da cidade. 
- Alô! Quer chamar por favor o Valdemar?

- Aqui não tem nenhum Valdemar.

Daí alguns minutos você liga de novo:

- O Valdemar, por obséquio.

- Cavalheiro, aqui não trabalha nenhum Valdemar.

- Mas não é o número tal?

- É, mas aqui nunca teve nenhum Valdemar.

Mais cinco minutos, você liga o mesmo número:

- Por favor, o Valdemar já chegou?

- Vê se te manca, palhaço. Já não lhe disse que o diabo do Valdemar nunca trabalhou aqui?

- Mas ele mesmo me disse que trabalhava aí.

- Não chateia.

Daí a dez minutos, liga de novo.

- Escute uma coisa! O Valdemar não deixou pelo menos um recado?

O outro desta vez esquece a presença da datilógrafa e diz coisas impublicáveis.

Até aqui é chatear. Para encher, espere passar mais dez minutos, faça nova ligação:

- Alô! Quem fala? Quem fala aqui é o Valdemar. Alguém telefonou para mim?
(Para gostar de ler. Vol. 5. São Paulo: Ática, 1990.)