sexta-feira, 21 de janeiro de 2011

ANTES DO BAILE VERDE - LYGIA FAGUNDES TELLES

 

 

 

 

VENHA VER O PÔR DO SOL


O mato rasteiro dominava tudo. E, não satisfeito de ter se alastrado furioso pelos canteiros, subira pelas sepulturas, infiltrando-se ávido pelos rachões dos mármores, invadira alamedas de pedregulhos esverdinhados, como se quisesse com a sua violenta força de vida cobrir para sempre os últimos vestígios da morte. Foram andando vagarosamente pela longa alameda banhada de sol. Os passos de ambos ressoavam sonoros como uma estranha música feita do som das folhas secas trituradas sobre os pedregulhos. Amuada mas obediente, ela se deixava conduzir como uma criança. Às vezes mostrava certa curiosidade por uma ou outra sepultura com os pálidos medalhões de retratos esmaltados.
- É imenso, hem? E tão miserável, nunca vi um cemitério mais miserável, é deprimente – exclamou ela atirando a ponta do cigarro na direção de um anjinho de cabeça decepada.- Vamos embora, Ricardo, chega.
- Ah, Raquel, olha um pouco para esta tarde! Deprimente por quê? Não sei onde foi que eu li, a beleza não está nem na luz da manhã nem na sombra da tarde, está no crepúsculo, nesse meio-tom, nessa ambigüidade. Estou lhe dando um crepúsculo numa bandeja e você se queixa.
- Não gosto de cemitério, já disse. E ainda mais cemitério pobre.
Delicadamente ele beijou-lhe a mão...


- Mais alguns passos...
- Mas este cemitério não acaba mais, já andamos quilômetros! – Olhou para atrás. – Nunca andei tanto, Ricardo, vou ficar exausta.
- A boa vida te deixou preguiçosa. Que feio – lamentou ele, impelindo-a para frente. – Dobrando esta alameda, fica o jazigo da minha gente, é de lá que se vê o pôr do sol. – E, tomando-a pela cintura: - Sabe, Raquel, andei muitas vezes por aqui de mãos dadas com minha prima. Tínhamos então doze anos. Todos os domingos minha mãe vinha trazer flores e arrumar nossa capelinha onde já estava enterrado meu pai. Eu e minha priminha vínhamos com ela e ficávamos por aí, de mãos dadas, fazendo tantos planos. Agora as duas estão mortas.
- Sua prima também?
- Também. Morreu quando completou quinze anos. Não era propriamente bonita, mas tinha uns olhos...Eram assim verdes como os seus, parecidos com os seus. Extraordinário, Raquel, extraordinário como vocês duas...Penso agora que toda a beleza dela residia apenas nos olhos, assim meio oblíquos, como os seus...


- Já chegamos, meu anjo. Aqui estão meus mortos.
Pararam diante de uma capelinha coberta de alto a baixo por uma trepadeira selvagem, que a envolvia num furioso abraço de cipós e folhas. A estreita porta rangeu quando ele a abriu de par em par. A luz invadiu um cubículo de paredes enegrecidas, cheias de estrias de antigas goteiras. No centro do cubículo, um altar meio desmantelado, coberto por uma toalha que adquirira a cor do tempo. Dois vasos de desbotada opalina ladeavam um tosco crucifixo de madeira. Entre os braços da cruz, uma aranha tecera dois triângulos de teias já rompidas, pendendo como farrapos de um manto que alguém colocara sobre os ombro do Cristo. Na parede lateral, à direita da porta, uma portinhola de ferro dando acesso para uma escada de pedra, descendo em caracol para a catacumba...


- A priminha Maria Emília. Lembro-me até do dia em que tirou esse retrato. Foi umas duas semanas antes de morrer... Prendeu os cabelos com uma fita azul e vejo-a se exibir, estou bonita? Estou bonita?...- Falava agora consigo mesmo, doce e gravemente.- Não, não é que fosse bonita, mas os olhos...Venha ver, Raquel, é impressionante como tinha olhos iguais aos seus.
Ela desceu a escada, encolhendo-se para não esbarrar
em nada.
- Que
frio que faz aqui. E que escuro, não estou enxergando...
Acendendo outro fósforo, ele ofereceu-o à companheira.
- Pegue, dá para ver muito bem...- Afastou-se para o lado.- Repare nos olhos.
- Mas estão tão desbotados, mal se vê que é uma moça...- Antes da chama se apagar, aproximou-a da inscrição feita na pedra. Leu em voz alta, lentamente.- Maria Emília, nascida em vinte de maio de mil oitocentos e falecida...- Deixou cair o palito e ficou um instante imóvel – Mas esta não podia ser sua namorada, morreu há mais de cem anos! Seu menti...
Um baque metálico decepou-lhe a palavra pelo meio. Olhou em redor. A peça estava deserta. Voltou o olhar para a escada...



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O QUE SERÁ QUE ACONTECEU?

LEIA
Antes Do Baile Verde

Autor: TELLES, LYGIA FAGUNDES
Editora: COMPANHIA DAS LETRAS
Assunto: LITERATURA BRASILEIRA - CONTOS E CRÔNICAS

Os dezoito contos reunidos em 'Antes do Baile Verde' examinam com olhar ao mesmo tempo crítico e solidário os mais variados destinos humanos. Descortinam-se conflitos amorosos, descobertas, e a tensão entre o desejo e a consciência moral

3 comentários:

Adriana Teixeira disse...

Muito bom, Parabéns pela sala e obrigada por compartilhar

Bom ano cheio de ricas bençãos do Senhor

Bjs

Dri

Eliana disse...

Suse,


Adorei seu novo blog, mais uma vez parabéns!!!
Fico orguhosa em saber do seu comprometimento, da sua alegria e responsabilidade em fazer seu trabalho, como você mesmo diz, com excelência....
Ontem conversávamos sobre você, Marilda, eu e Rosa, como a Marilda ainda não te conhece, eu contei a ela um pouco sobre nós no Canaã... a Marilda é uma pessoa muito especial e eficiente, por isso ela ficou felicíssima em conhecer sobre seu trabalho...Quando vc tiver um tempinho, passa no Monte Belo, a tarde, para conhecer a escola, vc será bem recebida!!!
Rosa me falou, que vc estará na sala de leitura....pronto,,,já imagino como será essas aulas, cheias de surpresas, mágicas e muitos histórias e fantasias...
Se eu não te conhecesse...
Bjs com saudades de um tempo distante dos olhos, mas bem próximo do coração....

Ah!!! Um ótimo ano letivo....

Anônimo disse...

Que bacana seu blog! Um show Professora! Eu sou o Profº Thiago da EMEF Paulo Prado. Gostaria de agradecer o comentário no meu blog. O seu blog está um luxo com conteúdos riquíssimos! Espero que no decorrer do ano possamos trocar experiências.
O meu blog ainda não foi apresentado aos alunos devido à questões técnicas, por isso não ando mexendo nele. Ainda assim, no que você precisar, estarei à disposição.
A sala de leitura da Paulo Prado será reformada, deste modo, tenho trabalhado ainda em sala de aula. Entretanto, as aulas já tem rendido bons frutos por parte do interesse dos alunos. E vamos em frente com o mundo da leitura!

Abraços e um ótimo trabalho!
Parabéns!