"Quando não
sei onde guardei um papel importante e a procura se revela inútil, pergunto-me:
se eu fosse eu e tivesse um papel importante para guardar, que lugar
escolheria? Às vezes dá certo. Mas muitas vezes fico tão pressionada pela frase
"se eu fosse eu", que a procura do papel se torna secundária, e
começo a pensar. Diria melhor, sentir.
E não me sinto
bem. Experimente: se você fosse você, como seria e o que faria? Logo de início
se sente um constrangimento: a mentira em que nos acomodamos acabou de ser
levemente locomovida do lugar onde se acomodara. No entanto já li biografias de
pessoas que de repente passavam a serem elas mesmas, e mudavam inteiramente de
vida. Acho que se eu fosse realmente eu, os amigos não me cumprimentariam na
rua porque até minha fisionomia teria mudado. Como? Não sei.
Metade das
coisas que eu faria se eu fosse eu, não posso contar. Acho, por exemplo, que
por certo motivo eu terminaria presa na cadeia. E se eu fosse eu daria tudo o
que é meu, e confiaria o futuro ao futuro.
"Se eu
fosse eu" parece representar o nosso maior perigo de viver, parece a
entrada nova no desconhecido. No entanto tenho a intuição de que, passadas as
primeiras chamadas loucuras da festa que seria, teríamos enfim a experiência do
mundo. Bem sei, experimentaríamos enfim em pleno a dor do mundo. E a nossa dor,
aquela que aprendemos a não sentir. Mas também seríamos por vezes tomados de um
êxtase de alegria pura e legítima que mal posso adivinhar. Não, acho que já
estou de algum modo adivinhando porque me senti sorrindo e também senti uma
espécie de pudor que se tem diante do que é grande demais".
(Texto extraído
do livro A Descoberta do Mundo, Clarice Lispector, editora Rocco, pg. 156).
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